De Mali à Cali No final de semana passada recebi um e-mail do meu amigo Dore Stein, que é o DJ de um programa de rádio chamado Tangents com uma lista de shows. Tangents é um programa excelente por uma série de fatores. Primeiro, como a emissora é da rede pública não há interrupção para comerciais. Segundo, é um show onde se pode ouvir música do mundo inteiro, especialmente coisas difíceis de encontrar. Terceiro, o tipo de música que se ouve nesse show raramente aparece nas rádios comerciais. O show vai ao ar todos os sábados das 20:00 às 24:00 horas (horário de San Francisco) e é possível ouvir o show pela internete.
Eu já tive o privilégio de substituir o Dore como dj algumas vezes. Foi uma experiência ótima que repito sempre que tenho a oportunidade. Uma vez ele dedicou metade de um show à música lusofônica e me chamou para colaborar com ele durante essa parte.
Muitas das pessoas que curtem música do mundo já se tornaram ouvintes assíduos. Às vezes ele também organiza festas com shows ao vivo. E de vez em quando ele manda um e-mail para todo mundo com uma lista de eventos e as primeiras pessoas a acertarem uma certa pergunta ganham um ingresso.
Dessa vez eu fui a sortuda. Ganhei um par de ingressos para ver dois artistas incríveis do Mali: Vieux Farka Toure, filho do legendário guitarrista Ali Farka Toure que faleceu no ano passado; e Toumani Diabate com a Symmetric Orchestra. O show foi na Villa Montalvo, um centro cultural localizado numa mansão, estilo vila italiana, a uma hora e meia de viagem daqui.
O local conta com três palcos ao ar livre e uma galeria de arte. Além de música, há também performances literárias e cursos de arte. Villa Montalvo foi construída em 1912 por James Duval Phelan, prefeito de San Francisco por três turnos consecutivos. Com fama de ser liberal, ele acabou sendo o primeiro senator eleito pelo estado da Califórnia. Villa Montalvo era o lugar favorito de Phelan que convidava artistas, músicos e escritores para visitar o local. Após a sua morte e de acordo com o que ele deixou estipulado no testamento, a vila passou a ser um local público o qual passou a ser administrado pela Associação de Artes de San Francisco desde 1930.
O nome Montalvo foi uma homenagem a um escritor espanhól do século XVI chamado Garcia Ordonez de Montalvo. Foi ele quem batizou o estado com o nome de Califórnia. Em uma de suas fábulas ele descreve Califórnia como uma ilha cheia de ouro e jóias, regida por amazonas, cuja rainha chamava-se Califia. Na estória, as amazonas cavalgavam em grifos, seres mitológicos com o corpo de leão e cabeça e asas de águia.
A entrada do lugar é impressionante. Para entrar na propriedade é necessário atravessar um desses portões de ferro com uma coluna de cada lado, onde do alto espiam duas estátuas dos grifos, uma de cada lado. Dirigi por uma milha até chegar ao alto de uma colina onde fica o centro cultural. Por boa parte do percuso pude avistar mansões de estilo europeu como as que se vê na área de Napa Valley. Eu nunca tinha visto tanta casa luxuosa num mesmo lugar. Eu às vezes me esqueço como tem gente rica nesse mundo.
Chegando no teatro ao ar livre avistei o meu amigo. O lugar estava cheio e do lado esquerdo do palco estava o contigente do Mali. Uma das mulheres estava linda, vestida da cabeça aos pés em amarelo.
Eu me apaixonei pela música do Mali quando ouvi Salif Keita pela primeira vez há quase 20 anos. Depois descobri Oumou Sangare, Boubacar Traore, Ali Farka Toure, Toumani Diabate e Rokia Traore, entre outros.
Vieux Farka Toure está seguindo a tradição de seu pai tocando um estilo de blues do Mali, também conhecido como desert blues. Alguns acreditam que o blues americano teve a sua origem no blues do Mali.
Toumani Diabate começou a tocar a kora quando tinha cinco anos de idade. A kora é um instrumento de 21 cordas feitas de linha de pesca, calabaça e pele de antílope. Ele participou de um projeto com Ali Farka Toure pouco antes de sua morte que lhe rendeu um Grammy. Foi a primeira vez que um músico ganhou o prestioso prêmio tocando kora.
Toumani Diabate faz parte de uma longa linhagem de griots, um tipo de repentista do Mali. Os griots são encarregados de manter viva a cultura Mandiga do antigo império medieaval do Mali que incluía outros países da área.
Durante o show um dos músicos falou que griot é na verdade uma palavra francesa que não descreve adequadamente o significado desses cantadores e trasmissores da história oral daquela região. Segundo ele, a palavra em bambara, um dos idiomas dominantes do Mali é djeli. Djeli també significa sangue. Ele disse que de acordo com a tradição mandinga o ser humano é o microcosmo do universo e é o sangue que mantém o corpo funcionando. O djeli tem a mesma função na comunidade, ou seja, cabe ao djeli zelar pelo bem estar da comunidade.
A Symmetric Orchestra é um conjunto de músicos de alto calibre oriundos de diversos países na África Ocidental que antigamente formam o Império do Mali e utiliza uma combinação de instrumentos tradicionais como o balafon, o djembe, o sabar (esses dois últimos são tambores) com instrumentos modernos como a bateria, o piano elétrico e o contrabaixo.
O show teve muitos pontos altos. O músico que tocava o djembe era incrível e realmente sabia como comandar a atenção da audiência; foi lindo quando o cantor se dirigiu à grupo do Mali cantanto sobre as virtudes da cultura do seu pais em Bambara; e por último, quando Toumani falou:
- Dizem que o inglês, o francês e até o chinês são línguas universais. Para mim, a música e a cultura são línguas universais... Dizem que a África é um continente pobre, mas de que vale riqueza se alguém não tem cultura?
Bravo!
Vale a pena visitar os dois artistas no link abaixo:
http://www.myspace.com/vieuxfarkatoure
http://www.myspace.com/toumanidiabate
Para Toumani Diabate também visite esse link:
http://www.worldcircuit.co.uk/#Toumani_Diabate
Lá você encontrará quatro músicas do seu último cd e um clip de mais ou menos dez minutos sobre o seu trabalho. O clip foi feito no Mali e é muito bonito (em francês, com subtítulo em inglês). Mesmo se você não é fluente em nenhum dos dois idiomas ainda vale a pena pelas imagens e pelo sentido geral da coisa.