Reflexões sobre a geopolítica da bunda
Hoje fiz uma busca rápida sobre A. A. Gill, o autor do artigo mencionado abaixo publicado na revista Vanity Fair no exemplar de setembro. Descobri que ele é escocês e que embora carregue um passaporte inglês despreza a Inglaterra. Ele não pára na Inglaterra. O seu estilo sarcástico e arrogante assim como a sua mania de generalizar sobre paises sobre os quais ele pouco conhece já causou muita controvérsia. Ele enfureceu os portugueses ao escrever uma crítica sobre um restaurante português em Londres. Sem nunca haver sequer estado em Portugal ele escreveu um artigo insultando a culinária portuguesa, os portugueses e a cultura do país. Ele fez o mesmo com a Albânia.
Quanto ao artigo abaixo, devo confessar que fiquei chocada com a coleção de asneiras escritas pelo Mr. Gill. Devo começar dizendo que a minha crítica não vem do fato de eu me sentir pessoalmente ofendida por alguém estar atacando ou falando mal do meu país. Esse é o primeiro contra-argumento que vem à tona. Eu não me considero uma pessoa nacionalista ou patriótica. Muito pelo contrário, sou a primeira a apontar as deficiências e os problemas onde quer que eu esteja morando.
A primeira coisa que me chamou a atenção nesse artigo foi a arrogância do autor e a sua abordagem sexista e eurocêntrica. Ele inicia o artigo com a sua versão geopolítica do mundo dividindo-o entre breast word (hemisfério norte) e bottom world (hemisfério sul).
Não é por acaso que ele descreve os Estados Unidos como o cleavage do mundo. O cleavage é o espaço entre os seios que insinua e atrae. Ele prossegue utilizando de forma irônica e distorcida o lema das campanhas de amamentação daqui: breast is best, seio é melhor. A seguir, ele comenta sobre “o busto saudável americano esperto e cheio de promessa.”
Segundo a sua definição da geografia feminina, o traseiro do mundo é o hemisfério sul, que para ele incluí a América Latina, a África e a Índia. Curiosamente esse hemisfério sul não incluí a Austrália ou a Nova Zelândia, por exemplo. Acho que o traseiro ao qual ele se refere não é clarinho. Ele justifica o seu argumento com adjetivos capazes de fazer qualquer menino adolescente americano sonhar com essas mulheres brasileiras que caminham rebolando pelas ruas com traseiros “vibrantes.”
Gill afirma que a adoração que os brasileiros têm pelo traseiro é o que define a sociedade brasileira e que isso torna a vida diferente. Ele diz que se as mulheres são apreciadas pelos seus seios elas têm que encarar os homens que estão olhando para seus seios nos olhos. Mas, como no Brasil as mulheres são admiradas por trás pela sua bunda e portanto não conseguem ver quando estão sendo objetos de desejo, elas têm que imaginar como estão sendo vistas. É por isso que, segundo Gill, as mulheres brasileiras têm ginga. Na sua opinião, a independência das mulheres brasileiras está diretamente relacionada com o seu traseiro. É a primeira vez que ouço dizer que rebolado leva à independência feminina. O segredo deve estar no baile funk ou nos ensaios das escolas de samba.
Ele então se refere “as qualidades” que todo mundo adora sobre o Brasil: futebol, samba, hot bottoms (bundas gostosas), carnaval, floresta amazônica e, é claro, como não podia faltar a nossa famosa mistura de raças. O problema é que esse Brasil que os gringos adoram é um Brasil que só existe nas fantasias geradas pelas brochuras turísticas. E um país reduzido a uma manisfestação cultural, o Carnaval, e a uma cidade, o Rio de Janeiro. E o país da fantasia sexual desses gringos que querem ir para o Brasil no carnaval para transar com alguma brasileira gostosa. Esse tipo de generalização e de estereótipo do Brasil como o país exótico onde tudo é possível, onde a transgressão é a regra reina no imaginário dos turistas. O Brasil por sua vez adora vender esse tipo de imagem.
Essa idéia da mulher brasileira como a fêmea insaciável e sempre pronta para qualquer programa está tão arraigada que até o babaca do departamento de estado quando estava me entrevistando para a cidadania não conseguiu resistir e me saiu com essa pérola:
- So where are you from in Brazil? (Então de onde você é no Brasil?)
- São Paulo.
- So you are not from Rio. (Então você não é do Rio.)
- No, I am not. (Não eu não sou.)
- So I guess I would not see you wearing a g-string biquini? (Entao quer dizer que eu não iria vê-la usando um biquini fio-dental.)
- No, I guess that would not be me. (Não, realmente não seria eu.)
É claro que eu senti vontade de mandar o cara para aquele lugar pelo seu abuso de poder mas a minha entrevista estava em jogo. Ele fez mais piadinhas no decorrer da entrevista mas pouparei os detalhes.
Logo que cheguei aqui eu achava engraçado e ao mesmo tempo esquisito como às vezes quando eu dizia para um homem que eu era brasileira e a reação era: really, mesmo? Era como se eu tivesse tido que eu era de Marte. Não era nada tão negativo, mas era bem claro para mim que a minha cidadania vinha carregada de muita fantasia do que significava ser uma mulher brasileira.
Antes que alguém diga que os E.U.A. são mais conservadores com o corpo e que o Brasil tem uma atitute mais liberal, mais sadia, quero afirmar aqui que a minha intenção é desafiar todo tipo de estereótipo. Eu não estou interessada numa visao de mundo maniqueista e polarizante onde culturas são definidas em relação ao seu oposto. O que me interessa é a complexidade das culturas, as nuances. É por isso que artigos como esse me enfurecem. Eu também questiono por que muitos brasileiros, brasileiras em particular, ainda se sentem lisonjead@s ao serem reduzid@s a uma boa trepada. Eu sei que vou desagradar muita gente aqui, mas às vezes eu acho que esse excesso do culto ao corpo no Brasil vem mais do fato da mulher brasileira compensar com o corpo pelo status que muitas delas não tem na sociedade. Em outras palavras, o corpo como única forma de articular o poder feminino. É claro que existe muito poder na sensualidade feminina, mas a meu ver esse poder tem de vir da mulher e não de uma versão produzida e imposta pela sociedade.
A minha auto-estima como cidadã brasileira não oscila por causa da violência, da corrupção, da nossa suposta sensualidade ou da beleza da Mata Atlântica. A minha brasilidade eu a carrego como parte da minha história pessoal que é bem mais complicada que a minha brasilidade sonhada ou até imaginada. A minha auto-estima em relação a minha cidadania não dependende dos acontecimentos no Brasil porque no Brasil acontecem coisas boas e ruins como em qualquer outro lugar do mundo.
Voltando ao texto publicado na Vanity Fair, o autor descreve as desigualdades sociais no Brasil em ritmo de oba-oba. Em sua opinião, o Brasil é um país onde ninguém sente dor ou responsabilidade, um país onde só existe expectativas e bundas. Certamente, ele deve estar se referindo ao comportamento das elites que adoram jogar ovos e vassouras pela janela. Se esse não é o caso, como ele se atreve a generalizar o povo de um país dessa forma? Tal arrogância vinda de um homem branco e privilegiado cujo único contato com o Brasil deve ter sido com a elite da zona sul do Rio me ofende como um tapa na cara.
Já que falei em auto-estima acima, eu me pergunto por que nós brasileiros somos os primeiros a concordar e até levar em ritmo de gozação esse tipo de generalização? Esse tipo de atitude só faz desmerecer o trabalho das pessoas honestas que vivem batalhando e sustentam a família com salário mínimo ou as que continuam trabalhando duro para se manter na classe média. Esse tipo de atitude não reconhece a competência dos professionais que atuam no Brasil, a criatividade dos artistas que não são globais, o empenho das pessoas que fazem trabalho comunitário, a inteligência das que estão envolvidas em pesquisa e a presença de muitos outros talentos. Por sinal, essas são as pessoas que deveriam ter aparecido no ensaio fotográfico vestidas em Dior e Dolce&Gabanna.
O ensaio fotográfio é um outro capítulo a parte. Quero só ressaltar aqui que usar o exemplo de alguns gatos pingados como a Camila Pitanga e a Taís Araújo para justificar o número desproporcional de modelos brancos é usar uma ou nesse caso duas exceções para invalidar um argumento que é legítimo na mídia brasileira.
Finalmente, para mim o fato desse texto ter sido publicado na Vanity Fair ou no New York Times não faz a mínima diferença. Eu acho importante criticar esse tipo de texto porque muita gente que lê esse tipo de coisa acredita, sim. Se esse não fosse o caso eu não continuaria ouvindo as asneiras em relação ao Brasil que ouço com frequência.
Quanto a esse Mr. Gill, eu sinto pena de um escritor cuja fórmula é a controvérsia, o insulto. É como Borat, que vende, vende, mas não significa que seja bom. Nada mais cliché que isso!
PS: Para quem quiser eu posso enviar o artigo original via e-mail.