Monday, August 20, 2007


Clandestino I

Tenho tantos documentos e todos eles tentam definir momentos da minha vida em termos de datas e números: registro de nascimento, certidão de casamento, registro de nascimento dos filhos, passaportes, vistos, carteira professional, carteira de identidade, CPF, título de eleitor, California Driver’s License, Social Security number, cartão de crédito, carteirinha da biblioteca, carteirinha do COSTCO, ATM Card, etc. Preciso desses documentos para provar quem eu sou, a quem estou conectada, onde posso morar, onde posso comprar. É impressionante o poder dos documentos sobre as nossas vidas.

Na tarde do dia fatídico em que perdi a minha viagem, poucas horas antes de eu ter de sair para o aeroporto, eu tive um encontro que reafirmou a minha vulnerabilidade quando se trata de documentos. Eu estava caminhando até a loja de animais para comprar comida para os gatos quando avistei uma conhecida da antiga escola dos meus filhos. Ela estava nervosa e perguntou se eu falava espanhól. Perto dela estava um jovem apoiando as costas com uma mão e segurando uma bicicleta com a outra.

Eu me apresentei, disse a ele que falava espanhól e perguntei o que havia acontecido. O carro no qual estava a minha conhecida e uma amiga dela atropelaram o moço na bicicleta. Segundo o jovem, a moça aparentemente não havia utilizada a seta avisando que ia virar à direita. O moço com a bicicleta estava ao lado do carro. Era também possível que o moço não tivessae visto ela dar a seta.

Fiquei ali por uns quinze minutos traduzindo pra lá e pra cá. As mulheres tentando decidir como ajudar e o moço recusando ajuda. Não me levou muito tempo para entender a situação. Perguntei:

¿Habla inglés?

No.

¿Tiene seguro de salud?

No.

(Agora o mais importante) ¿Tiene papeles?

Eu nem precisei traduzir essa parte. Minha amiga virou para mim e disse:

He is undocumented, isn’t he?

Nos círculos mais progressistas usá-se o termo undocumented ao invés de illegal. Outro termo que eu detesto é legal or illegal alien. Eu sempre brinquei dizendo: “é claro que eu sou uma alienegena, você não está vendo as minhas antenas?”

Ele estava com tanto medo que não queria que chamassem a ambulância. Disse que queria caminhar até a sua casa que ficava a quilômetros de distância. Tem mais uma: aqui quando se chama a ambulância quem paga a conta é você, caso não tenha seguro ou caso o seguro não cubra. Ele também estava com medo do hospital ou da polícia entregá-lo a la migra. Eu tentei acalmá-lo dizendo que era uma questão de emergência e que os hospitais não podiam fazer isso.

Minha amiga se ofereceu para retirar dinheiro do banco para que ele pudesse ver um médico e consertar a bicicleta. Ela também se ofereceu para levá-lo até a sua casa. Atravessei a rua, comprei a comida do gato, quando voltei a polícia já estava lá. Traduzi mais um pouco: nome, data de nascimento, o que havia ocorrido. Eis então que a polícia pediu o endereço. É óbvio que ele não queria dar o endereço, pois estava com medo. Ele então começou a enrolar tentando confundir os policiais. Num determinado momento a policial que o estava entrevistando me disse que aquele endereço não fazia o menor sentindo.

Nesse momento eu me dei conta que estaria prestando mais ajuda indo embora que traduzindo (diga-se de passagem de graça) para a polícia. Expliquei à policial que eu não havia presenciado o acidente, que estava ali só de passagem (mostrei a comida do gato), que precisava sair para o aeroporto em três horas e que estava na hora de eu me arrancar dali.

Como ninguém mais ali falava espanhól eles tinham que se virar com a pouca informação que ele estava disposto a oferecer. No entanto, antes de ir, eu disse ao rapaz em espanhól que ele podia confiar na minha amiga e que ela somente queria ajudar-lo. Desejei-lhe suerte e sai com o coração apertado pensando no poder da língua e dos papeles.

Foto: Google Images.

Manu Chao - Clandestino


3 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Nossa, Regina, que história... fiquei imaginando a agonia do moço. Espero que ele tenha conseguido se livrar dos policiais de alguma maneira. Coitado.

bjs

1:31 PM  
Blogger Regina said...

Cris,

Esse tipo de situacao e' de partir o coracao. Eu tambem me dou conta do privilegio que tenho em termos de educacao e de saber falar outros idiomas. Pelo menos eu tento utilizar esses meus "privilegios" para tentar ajudar quem precisa.

Bjs.

Regina

1:02 AM  
Blogger oakleyses said...

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7:23 PM  

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