Friday, May 11, 2007

Reinventando Babel

Eu e meu marido nos conhecemos aqui, embora ele ainda estivesse morando na Alemanha. Na época nos dois já falávamos inglês bem. Eu não falava alemão, nem ele português. Todos os filmes de Herzog ou Fassbinder que eu tinha assistido no Instituto Goethe em São Paulo não me prepararam os ouvidos para a minha primeira visita à Alemanha. Eu me lembro de estar no apartamento ouvindo o meu então namorado conversando com os amigos em alemão. Mais uma vez eu me encontrava na mesma situação de quando cheguei nos Estados Unidos: captando apenas sons, mas sem entender nada ou quase nada.

Eu nunca pensei que seria possível viver uma relação tão íntima e intensa numa terceira língua. Além das diferenças culturais, tínhamos que traduzir as sutilezas do relacionamento através de um terceiro filtro. Para que chegássemos a nos conhecer foi necessário pegar um avião, ir até um outro país, estar no mesmo lugar por menos de uma semana e ter aprendido um outro idioma: o inglês. O lado positivo da situação é que nós dois estávamos no mesmo barco; nenhum tinha vantagem sobre o outro.

O engraçado é que por incrível que pareça, o alemão tem algumas palavras e expressões de origem latina e, portanto, parecidas com o português. Às vezes quando estávamos conversando e nos faltava a palavra em inglês, eu tentava a palavra em português ou ele em alemão. Na maior parte das vezes conseguíamos deduzir o que o outro queria dizer assim, numa mistura de contexto e associação cultura e linguística. Esse processo de dedução/associação entre os dois idiomas, português e alemão, ainda acontece quando estou conversando com algumas das minhas amigas alemãs.

Quando decidimos ter filhos eu sabia que ia falar com eles em português. Em primeiro lugar, porque o português é a minha língua materna. Sem a habilidade de falar e entender português meus filhos não teriam acesso à minha estória e às experiências que informam em grande parte a pessoa na qual eu me tornei. Tampouco teriam acesso a todo um universo cultural conectado com a língua portuguesa. Em segundo, eles não conseguiriam se comunicar com a minha família no Brasil. Por último, eu acho importante que os meus filhos falem outras línguas. Vivemos em um país que se orgulha do seu isolamento e cujo idioma é considerado língua franca no mundo, o que, na minha opinião, torná-se imperativo que as crianças aprendam que o mundo é muito mais vasto e interessante que um só país.

O meu marido começou a falar em alemão com eles quando eram bebês. Eu também quiz aprender alemão para ter acesso a uma parte da vida dele que aconteceu em alemão e a para melhor entender a sua cultura. Eu brinco que aprendi alemão por osmose. Entendo muito mais do que falo porque nunca estudei formalmente. Mas hoje em dia, consigo me comunicar com ele em parte em alemão. Ele também entende mais português hoje em dia, graças aos filhos, porque sempre ele me ouve falando em português com as crianças. Ele também fala francês, o que ajuda um pouco com o português.

Uma vez por semana nos encontramos com um grupo de cinco famílias para fazermos atividades em português. Algumas atividades são estruturadas, outras não. O importante é normalizar o uso da língua portuguesa e cultivar experiências positivas associadas à cultura brasileira. A intenção é também criar-se um contexto onde todas as pessoas no grupo falam o mesmo idioma. Dessa forma, a criança não se sente como parte da única família a utilizar essa língua estranha. Fazemos o mesmo do lado alemão. As crianças tomam aulas, as mães socializam e celebramos tradições e jogos infantis. No começo, era o meu marido quem levava as crianças ao grupo. Depois de um tempo, eu comecei a levá-las. Foi assim que eu aprendi alemão. Todas as mães no grupo são alemãs, exceto eu. Elas se comunicam o tempo todo em alemão. Com o tempo, eu fui aprendendo e hoje em dia consigo fazer parte do bate-papo.

Em casa, eu falo com as crianças em português, o pai em alemão (e um pouco em inglês), entre eu e ele inglês e alemão, e as crianças geralmente respondem em inglês. Às vezes quando estamos a sós eu e ele também usamos um pouco de francês, just for fun. Meus filhos também conseguem ler em português e alemão. É uma loucura quando estamos em lugar público, como num restaurante. As pessoas ao redor ficam tentando identificar que língua estamos falando e nós continuamos alternando de uma para outra.

É normal que as crianças respondam em inglês porque é a língua na qual se sentem mais à vontade e na qual se sentem mais competentes. Há também a pressão do meio ambiente e da escola. Mas o importante é que os pais não parem de usar a língua materna, mesmo que as crianças respondam em outra língua, nesse caso o inglês. Eu já vi muitas famílias que desistem de usar o outro idioma porque a criança só responde em inglês. O que acontece então é perda total da língua materna, a perda da identificação cultural com o país de origem dos pais e o rompimento nos laços afetivos com a família que reside no país de procedência dos pais. Muitas dessas crianças quando adultos tentam recuperar e reaprender o idioma. Alguns deles culpam os pais por tê-los negado esse direito.

Embora o ideal fosse que meus filhos respondessem no idioma no qual estão sendo falados, eu não exijo que eles me respondam o tempo todo em português porque não quero que eles percam o carinho pelo idioma e pela cultura brasileira. Conheço adultos que foram forçados a falar a língua dos pais quando eram pequenos e hoje em dia não a utilizam mais e nem sequer têm o mínimo interesse em transmiti-la para os seus filhos. Eu sei que os meus filhos sabem falar português porque sempre respondem em português quando estão falando com outros brasileiros aqui ou quando visitamos o Brasil.

Além do mais, no caso dos meus filhos, eles já lidam com três idiomas na família e aprendem espanhól na escola. Há muitas outras crianças por aqui numa situação semelhante, então para eles isso é completamente normal. Eles me ouvem conversando com a minha vizinha e com o pediatra que são mexicanos ou com a mãe da amiguinha venezuelana em espanhól, com o dono de restaurantizinho aqui do lado onde compramos bolinhos de batata em francês (no meu francês macarrônico, mas ainda assim). Como as línguas de origem latina têm muito em comum, e crianças são gênios líguisticos com cérebros que funcionam como esponjas, pular do português para espanhól ou francês é para elas quase natural. Por exemplo, a minha vizinha fala com eles em espanhól. Eu sei que eles entendem porque respondem de volta em inglês. Outro dia, o meu filho estava mostrando Titeuf, um desenho animado de um menino meio punk em francês no youtube para um amiguinho. O amigo não estava entendendo nada. Então o meu filho começou a "traduzir" para o amigo, que por sua vez perguntou como ele sabia francês. A resposta dele estava na ponta da língua: “eu não sei, só sei que sei.” Obviamente, isso não significa que os meus filhos são seres superdotados ou que sejam fluentes em todos esses idiomas, mas tenho certeza que se um dia decidirem se aprofundar em um deles não terão dificuldade alguma.

Ensinar um outro idioma é um dos melhores presentes que podemos dar aos nossos filhos. E nesse caso, não custa nada, já está em casa.

Arte: Sônia Menna Barreto, Casa da Cultura (via Google Images). Vale a pena clicar na imagem para melhor poder ver os detalhes.

17 Comments:

Blogger Andréa said...

Wow, que legal isso, Regina! Que loucura tambem que deve ser!! :)

Adorei conhecer esse lado seu e da sua fmailia. To louca pra conhece-los todos ao vivo e em cores. :-)

Beijo.

7:08 AM  
Anonymous Anonymous said...

Re, sensacional este post. Adorei o sistema de voces das reunioes nas quais o idioma é posto em contexto. Ótima ideia! Como disse, o Mateus entende tudo o que falamos, mas só nos responde em espanhol. Ainda estou esperando que ele solte a língua. É um privilégio, sem dúvida, poder proporcionar um universo tao vasto pra nossos filhos.
Beijos,

10:04 AM  
Anonymous Anonymous said...

Regina,
Sensacional mesmo! E vocês encontraram, primeiro por força da necessidade, e depois por reconhecer a importância, o melhor método para ensinar/aprender uma língua: o "natural", ou por osmose. Os teus filhos são realmente abençoados não somente por terem pais bilíngues, mas, principalmente, por vocês serem totalmente antenados com a questão da multiculturalidade.
Parabéns para todos da família,
Cris

10:55 AM  
Blogger Regina said...

Andrea,

A "loucura' quando se torna cotidiana vira norma. :-)

E seu marido, fala (ou entende) portugues?

Eu tambem adoraria conhece-los ao vivo. One of these days...

Bjs.

Regina

11:05 AM  
Blogger Regina said...

Vanessa,

Obrigada. Acabei de reler o post e "concertei" um porcao de errinhos que tinham passado despercebido as duas da manha, hehehe

Nao desista de falar em portugues com o Mateus. Um dia desses ele desata... Tenho certeza de que esta tudo na cabecinha dele.

Beijocas,

Regina

11:06 AM  
Blogger Regina said...

Cris,

Obrigada! Eu adoro poder me comunicar em varios idiomas, especialmente porque adoro me comunicar com outras pessoas e aprender sobre culturas diferentes.

E' claro que de certa forma acabo passando um pouco disso para os meus filhos. Eu tambem me lembro como foi dificil comecar a falar o primeiro idioma estrangeiro (no meu caso foi o ingles). Tudo isso e' muito mais facil quando se e' crianca.

PS: Espero que voce tenha lido a versao editada. Quando reli o texto agora de manha descobri uma porcao de errinhos ou frases que precisam ser editadas. E' duro ser virginiana...

Beijos,

Regina

Beijos,

Regina

11:09 AM  
Blogger Zeca said...

Eu e a Vivian acabamos de ler seu post e ficamos conversando sobre isto. É realmente incrível o que você escreveu. Temos uma amiga brasileira aqui que é casada com um alemão e tem 2 filhos. Ela fala em português, o marido em alemão. O filhinho mais velho está cansado, não conversa mais em português, ela acha que ele está esquecendo a língua. Lendo seu post, percebo que deve ser o início desse repúdio à língua da mãe, já que ela insiste tanto com ele. Vou mandar o link desse post pra ela. Uma coisa é fato, é uma graça ouvir as crianças falando português com sotaque alemão ou inglês, não é mesmo?

Ótimo final de semana pra você e sua linda família!

Zeca e Vivian

1:22 PM  
Blogger JAM said...

É REgina, também me assusta aqui na Bélgica ver pessoas (em geral as maes) que falam espanhol ou português, abandonando o 'falar a língua materna' em detrimento do holandês (língua desta parte da Bélgica que moro)...Sempre 'pego no pé'das amigas e digo a elas, que no futuro, com o domínio de mais uma língua, como o espanhol (que é bem mais falado no mundo que o holandês) a criança agradecerá a ela...

Além de tudo o que vc falou sobre se comunicar com a família, acesso a cultura familiar, etc...

Muito legal o post ;)

11:04 AM  
Blogger Luiz Roberto Lins Almeida said...

muito bom pras crianças essa educação. Desejo muita sorte pra vcs!
Que inveja!, sou monoglota...

7:10 AM  
Blogger forasteiro said...

Ótimo isso. Culpo minha mãe até hoje por não ter me ensinado alemão.

7:32 AM  
Blogger Regina said...

Zeca e Vivian,

Diga a sua amiga que isso e' normal (nao querer responder na lingua dos pais). O importante e' ela nao parar de falar em portugues com eles. Conheco um rapaz, cuja mae era holandesa. Ele me disse que quando era crianca passou por uma fase em que se recusa a falar holandes (o pai era americano). Mas quando se tornou adulto se deu conta do valor de saber outras linguas e hoje em dia e' completamente bilingue.

Beijos,

Regina

9:57 AM  
Blogger Regina said...

Jamine,

Eu sinto uma tristeza muito grande quando vejo familias cujos filhos so falam/entendem a lingua dominante. Voce tem toda razao, linguas como o espanhol sao faladas em muitos paises. Aqui na California falar espanhol tambem ajuda a conseguir trabalho.

Beijos,

Regina

9:59 AM  
Blogger Regina said...

Luiz Roberto,

Seja benvindo e obrigada pela visita.

Ainda ha tempo para voce aprender outras linguas. Eu nao falava ingles quando cheguei aqui. So tinha um conhecimento sobre a gramatica que aprendi na escola no Brasil. Eu so comecei a falar outra lingua quando estava com vinte e poucos anos. Depois que voce aprende a primeira, as outras vem com mais facilidade.

Bj.

Regina

10:01 AM  
Blogger Regina said...

Forasteiro,

Nunca e' tarde para aprender outras linguas. O Instituo Goethe geralmente oferece aulas de alemao.

Bj.

Regina

10:02 AM  
Blogger Leticia. said...

Faco com minha flor de 4 anos exatamente como vc faz com os seus. Ela traz o ingles e eu devolvo portugues, mas sem cobrar que ela fale portugues. O que acontece muitas vezes e' dela engatar no portugues depois de algumas frases. Isso tambem acontece muito nos fins de semana quando estamos os 3 em casa e falando portugues. La' pelo domingo ela fala mais portugues. Mas tempos sorte porque passamos no minimo 2 meses no Brasil por ano e ei' ela volta "tinindo" no portugues.

Muito obrigada pelo texto. Muito sensivel e tambem muito informativo -- bacana ver que nao estou so' nessa questao da lingua.

Bjs,

Leticia.

10:13 PM  
Blogger Regina said...

Leticia,

Parabens pela flor. Sempre fico feliz quando encontro outras familias que estao fazendo um esforco para manter a lingua materna.

Que sorte voce tem de poder ir ao Brasil todo ano!

Beijos,

Regina

10:34 AM  
Blogger Lucia Malla said...

Muito legal seu post narrando essa experiência multi-linguística. Um grande presente q vc dá aos seus filhos, tenha certeza, pq no futuro isso será muito importante. Parabéns pelo belíssimo exemplo. Beijos!

8:05 AM  

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